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domingo, 29 de agosto de 2010

Nossa memória

Memória Dr. Roberto Godoy


reduzir / aumentar

Há duas maneiras pelas quais o cérebro adquire e armazena informações: memória de procedimento e memória declarativa. Essas duas formas divergem tanto no que diz respeito aos mecanismos cerebrais envolvidos como nas estruturas anatômicas.



A memória de procedimento (também chamada implícita) armazena dados relacionados à aquisição de habilidades mediante a repetição de uma atividade que segue sempre o mesmo padrão. Nela se incluem todas as habilidades motoras, sensitivas e intelectuais, bem como toda forma de condicionamento. A capacidade assim adquirida não depende da consciência. Somos capazes de executar tarefas, por vezes complexas, com nosso pensamento voltado para algo completamente diferente.



Por outro lado, a memória declarativa (também chamada explícita) armazena e evoca informação de fatos e de dados levados ao nosso conhecimento através dos sentidos e de processos internos do cérebro, como associação de dados, dedução e criação de idéias. Esse tipo de memória é levado ao nível consciente através de proposições verbais, imagens, sons etc. A memória declarativa inclui a memória de fatos vivenciados pela pessoa (memória episódica) e de informações adquiridas pela transmissão do saber de forma escrita, visual e sonora (memória semântica).



Analisando a memória quanto ao tempo de armazenamento das informações, pode-se classificá-la em memória de trabalho, memória de curto prazo e memória de longo prazo.

A memória de trabalho, que alguns acreditam ser parte da memória de curto prazo, atua no momento em que a informação está sendo adquirida, retém essa informação por alguns segundos e a destina para ser guardada por períodos mais longos ou a descarta. Quando alguém nos diz um número de telefone para ser discado, essa informação pode ser guardada se for um número que nos interessará no futuro ou ser prontamente descartada após o uso. A memória de trabalho pode, ainda, armazenar dados por via inconsciente.



A memória de curto prazo trabalha com dados por algumas horas até que sejam gravados de forma definitiva. Este tipo de memória é particularmente importante nos de cunho declarativo. Em caso de algum tipo de agressão ao cérebro enquanto as informações estão armazenadas neste estágio da memória, ocorrerá sua perda irreparável.



A memória de longo prazo é a que retém de forma definitiva a informação, permitindo sua recuperação ou evocação. Nela estão contidos todos os nossos dados autobiográficos e todo nosso conhecimento. Sua capacidade é praticamente ilimitada.



Não há uma estrutura ou uma determinada porção do cérebro reconhecidamente depositária de informações, embora se acredite que o lobo temporal esteja envolvido com a memória dos eventos do passado. Entretanto, são conhecidas várias estruturas cerebrais envolvidas com a aquisição e o processo de armazenamento de dados.





Mecanismos da memória



Ainda não se conhece definitivamente o mecanismo, ou os mecanismos, pelo qual o cérebro adquire, armazena e evoca as informações.



Não obstante, alguns modelos são propostos para explicar essa função do cérebro humano.

O primeiro dos modelos propostos, tem como base a atividade elétrica cerebral. Assim, a informação seria guardada em circuitos elétricos, ditos reverberantes. Evidência desse mecanismo é obtida pela existência de conexões neuronais recorrentes, ou seja, ramificações da célula nervosa (neurônio) que voltam ao seu próprio corpo, reestimulando-a. É possível que esse mecanismo esteja presente na manutenção das informações nas memórias de trabalho e de curto prazo.



O segundo modelo baseia-se na produção de substâncias químicas que conteriam um código relacionado às informações. Esse modelo supõe que os neurônios possam sintetizar ARN (ácido ribonucléico) e que esta substância conteria um código da memória da mesma forma que o ADN (ácido desoxirribonucléico) contém a codificação genética. Embora se tenha verificado aumento da síntese de ARN em fases de aprendizado, atualmente acredita-se que essa síntese seja responsável mais pelo funcionamento celular que pela criação de um código químico, de forma a ter-se relegado a um segundo plano essa hipótese.



Outro modelo pressupõe a alteração das conexões entre os neurônios, sendo denominado modelo conexionista. Todos os neurônios emitem ramificações que se comunicam com outros neurônios, tendo umas, caráter estimulante e outras, caráter inibitório para a célula a que se destinam. A transmissão do impulso nervoso é feita no ponto de encontro dessas ramificações com a célula alvo, ponto esse denominado sinapse.



Haveria alteração da função sináptica criando novos circuitos neuronais e seriam esses circuitos que codificam as informações. Esse modelo tornou-se bastante plausível depois que se comprovou, experimentalmente, o aumento da resposta sináptica com a aplicação de estímulos repetitivos. Assim, acredita-se que o substrato da memória é o aumento da função sináptica (hipertrofia) ou a criação de novas sinapses. Esse modelo é bastante interessante, pois, além de esclarecer como são guardadas as informações, permite explicar, também, a atenuação das lembranças, fenômeno conhecido por todos e que seria devido à diminuição da função sináptica causada pelo desuso.





Amnésia



A amnésia é uma entidade patológica provocada por diversas causas em que o indivíduo perde a capacidade de reter informações novas (amnésia anterógrada) ou de evocar as antigas (amnésia retrógrada).



As amnésias são sempre causadas por agressões ao cérebro que podem ter caráter transitório ou permanente, sendo algumas delas destacadas a seguir.



Síndrome de Korsakoff. Essa doença foi descrita como decorrência de alcoolismo crônico, podendo, no entanto, decorrer de outras causas. A amnésia é o sintoma predominante nessa síndrome, sendo caracteristicamente do tipo anterógrado.



Amnésia traumática. As pessoas que sofrem um trauma de crânio de certa intensidade, muito freqüentemente, esquecem-se dos fatos que ocorreram minutos antes do trauma (amnésia retrógrada) e, também, dos fatos que ocorrem após o trauma (amnésia anterógrada), embora não percam a consciência. Há uma certa relação de proporcionalidade entre a intensidade do trauma e o tempo de amnésia.



Amnésia global. Essa forma de amnésia está relacionada com um grave e difuso comprometimento cerebral. Há, de forma definitiva, amnésia tanto anterógrada quanto retrógrada, ou seja, o indivíduo perde a capacidade de reter novas informações e de evocar seu estoque antigo de informações. Tal situação ocorre em demências, traumas muito graves e intoxicações por monóxido de carbono.



Amnésia global transitória. Nessa situação a amnésia dura algumas horas, não ultrapassando um dia, e a recuperação é completa. O indivíduo tem comportamento normal, porém não retém nenhuma informação durante o episódio, ou seja, tem amnésia anterógrada completa, permanecendo uma lacuna na memória dessa pessoa depois da recuperação. A causa desse problema não está, ainda, totalmente esclarecida, parecendo estar ligada à isquemia transitória afetando as partes internas do lobo temporal. Essa patologia tem curso benigno, sendo excepcional um segundo episódio.



Amnésia pós-operatória. Há cerca de 50 anos, um neurocirurgião americano, para poder tratar um paciente com crises convulsivas que não melhorava com remédios, fez uma cirurgia retirando, de ambos os lados, certas partes do lobo temporal (hipocampo e porção medial). Esse paciente obteve um controle das crises, mas ficou com amnésia anterógrada muito intensa e, até hoje, põe-se em dúvida se o benefício obtido valeu pelo déficit adquirido. Quanto à lembrança de fatos e conhecimentos anteriores à cirurgia, esse paciente não sofreu alteração.





Esquecimento



Ao contrário da amnésia em que há perda de uma capacidade, o esquecimento é uma falha na retenção ou na evocação dos dados da memória.



Trata-se de fenômeno muito comum que, em maior ou menos grau, ocorre com qualquer pessoa.

No entanto, é cada vez maior o número de pessoas que se sentem incomodadas com o problema e que buscam solução.



A principal questão no que se refere ao esquecimento é saber sua causa. Alguns postulam que ocorre uma debilitação dos traços de memória com o passar dos anos. Outros, no entanto, acreditam que novos conhecimentos podem interferir prejudicando a memória.



O desuso provocaria um enfraquecimento dos circuitos da memória, conforme o modelo conexionista, tornando cada vez mais difícil o acesso a essas informações. Isto pode explicar parte do problema, mas não todo ele. É fato que com o passar da idade as pessoas têm mais dificuldade para lembrar de fatos passados, porém essa dificuldade é mais intensa para os fatos recentes enquanto fatos remotos marcantes, ainda que não utilizados com freqüência, podem ser lembrados facilmente, inclusive em detalhes.



Considerando-se a interferência, sabe-se que um novo aprendizado pode interferir com um antigo que lhe guarde alguma semelhança ou que lhe possa ser associado. Assim, a cada nova informação haveria modificação naquelas já sedimentadas. O acúmulo de informações ao longo do tempo faria com que pessoas de mais idade tivessem maior dificuldade em relação à evocação da memória.

Nenhuma dessas causas explica totalmente a ocorrência do esquecimento, mas não podem ser descartadas como componentes do problema.



Há, no entanto, um outro importante aspecto a ser considerado. Não é possível evocar uma informação se ela não foi devidamente arquivada. Para que o ser humano possa reter na memória uma determinada informação, é necessário que sua atenção esteja voltada para isso. Sem atenção, não há qualquer possibilidade de se guardar um fato e sem guardá-lo, não há como recuperá-lo depois.



O combate ao esquecimento deve levar em consideração a atenção e o poder de concentração, bem como os fatores que os facilitam ou os dificultam. Também se deve atentar para os fenômenos do desuso e da interferência de novos aprendizados.





Fatores interferentes





O cérebro humano está sujeito a estímulos externos através dos sentidos, a estímulos internos advindos do organismo e a estímulos de ordem emocional. Há quem acredite que o ser humano só consegue pensar porque há uma interação desses estímulos.



Com a atenção e o poder de concentração não é diferente. Assim, há fatores externos e internos que facilitam ou dificultam a atenção.



O interesse pessoal sobre determinado assunto faz com que certas pessoas possam quase que decorar informações com uma única e simples leitura. É de conhecimento geral que quanto maior o interesse mais facilmente se aprende.



A vivência de fatos com alta carga emocional, faz com que os mesmos permaneçam para sempre na memória. São os chamados fatos marcantes na vida de uma pessoa que, mesmo ocorrendo uma única vez, não são jamais esquecidos.



Por outro lado, as preocupações com os problemas diários, a ansiedade e, em muitos casos, a depressão, são fatores que turvam a atenção e, como conseqüência, impedem a retenção de informações novas, gerando a impressão de que a “memória está falhando”.



Esses fatores normalmente não afetam diretamente a memória mas sim a atenção e a concentração. No entanto, quando muito intensos podem provocar alterações temporárias da memória. É o caso dos conhecidos “brancos” que ocorrem em situações de ansiedade intensa.



Há, ainda, um outro fator ao qual se começa a dar atenção. Trata-se da relação e possível interferência entre as memórias explícitas e implícitas. Toda atividade humana, inclusive as puramente intelectuais, tendem a ser automatizadas. Muitas de nossas atividades são repetidas diariamente e ao longo do tempo vão deixando de ser conscientes passando a ser executadas sem que dediquemos a elas a menor atenção. Com o passar da idade, a maioria das pessoas passa a só executar atividades e tarefas que já realizou um sem-número de vezes e isso, evidentemente, dificulta sua atenção e, conseqüentemente, a retenção na memória dos fatos ocorridos e das informações veiculadas nesse período. Esse fenômeno é mais comum do que se imagina, e tem como exemplo a leitura automática, em que o leitor ao cabo de uma página não consegue se lembrar de uma linha sequer.



A maioria das pessoas com problema de esquecimento, na realidade nada tem de errado com sua memória, mas sim com os mecanismos que levam a informação até a memória.





A memória humana e a escrita



O ser humano desenvolveu a capacidade de transmitir conhecimento a seus semelhantes. Talvez tenha sido essa capacidade que permitiu sua sobrevivência como espécie e, certamente, foi ela que lhe deu a supremacia na escala evolutiva.



Nos primórdios da civilização bastou que esse conhecimento fosse transmitido por uma linguagem que misturava sons e gestos. Como isso era transmitido de geração em geração e como quem conta um conto aumenta um ponto, criaram-se histórias fantásticas. Surgiram as lendas das quais até hoje temos notícia.

Durante a era do gelo a humanidade sobreviveu graças à caça de grandes animais, mas ela terminou. O ambiente mudou radicalmente e o ser humano foi obrigado a encontrar outras fontes de alimentação. Daí surgiu a agricultura e, com ela, a sedentarização, a organização social em cidades e o acúmulo de riquezas.

A humanidade percebeu que não havia mais como confiar somente na memória e, por volta do ano 3.100 a.C., surgiu a escrita. No princípio, era um simples rol de riquezas estocadas em armazéns, mas logo o homem começou a usá-la com finalidade religiosa, cultural e comercial.



Com o grande salto cultural dado pelos gregos no período clássico, a escrita tornou-se o principal instrumento na transmissão do saber e, paralelamente, um instrumento de poder político.No entanto, a escrita não foi aceita por todos. Platão, através de Sócrates em seu diálogo com Fedro, nos traz ao conhecimento uma lenda egípcia. Thot, deus a quem era consagrada a ave íbis, inventou os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, o jogo de damas e os dados, e a escrita. Durante o reinado de Tamuz, o deus ofereceu-lhe suas invenções, dizendo-lhe para ensiná-las a todos os egípcios. Mas Tamuz quis saber de suas utilidades e, enquanto o deus explicava, o faraó censurava ou elogiava, conforme essas artes lhe parecessem boas ou más. Quando chegaram à escrita Thot disse que aquela arte tornaria os egípcios mais sábios e lhes fortaleceria a memória. No entanto, Tamuz respondeu-lhe que a escrita tornaria os homens esquecidos, pois deixariam de cultivar a memória. Ao confiar apenas nos livros, só se lembrariam de um assunto exteriormente e por meio de sinais, e não em si mesmos. Os homens tornar-se-iam sábios imaginários.



Nesse mesmo diálogo, Sócrates considera a escrita como algo que limita o pensamento, que engessa as idéias. Um discurso escrito, dizia ele, será sempre o mesmo, repetido inúmeras vezes sem que se possa agregar novas idéias. Ironicamente, se hoje sabemos muito da filosofia de Sócrates é porque Platão a escreveu.



Analisando a questão frente a nossos conhecimentos sobre a memória humana, podemos, no entanto, afirmar que escrever é uma forma salutar de ampliar nosso banco de dados. Salutar porque é preciso esquecer para poder lembrar. Explicando, nossa memória não pode guardar absolutamente todas as informações que lhe chegam, sob risco de bloqueio. É armazenando somente o que interessa e associando convenientemente os dados estocados que a memória pode ser evocada.



De qualquer forma, a escrita está aí, imutável ao longo do tempo (a não ser, claro, em algumas dessas péssimas traduções com que por vezes nos deparamos), pronta para ser consultada quando precisamos e, sobretudo, liberando o cérebro humano para a associação dos conhecimentos armazenados e a criação de novas idéias.



A título de ilustração, sabe-se que com treinamento intenso e adequado, uma pessoa pode reter uma seqüência de 50, 100 algarismos. No entanto, com papel e lápis qualquer um terá a mesma seqüência guardada, com um mínimo de esforço.



Finalizando, não podemos nos esquecer do que dizia Confúcio......Bem, ele dizia......O que mesmo ele dizia?........Acho que me esqueci, teria sido melhor escrever.

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